sábado, 10 de outubro de 2009

O Altruísmo de Jó (Este texto é parte integrante do meu pretenso livro "Altruísmo Bíblico", em fase de finalização)


“Se desprezei o direito do meu servo ou da minha serva, quando eles contendiam comigo... (...) Se retive o que os pobres desejavam ou fiz desfalecer os olhos da viúva; ou sozinho comi o meu bocado, e o órfão não comeu dele (...); se a alguém vi perecer por falta de veste e, ao necessitado, por não ter coberta; (...); se eu levantei a mão contra o órfão, porque na porta via a minha ajuda, então caia do ombro a minha espádua, e quebre-se o meu braço desde o osso. Porque o castigo de Deus era para mim um assombro, e eu não podia suportar a sua grandeza.” [1]
(Jó 31.13-23)
Qualquer estudo que se empreenda sobre o livro de Jó não deve deixar de levar em conta o fato de que o patriarca de Uz não era apenas um homem de fé, completamente devotado a Deus, mas também um homem que vivia a verdade bíblica em todos os aspectos de sua vida, inclusive no que diz respeito ao seu altruísmo.
Esta faceta da vida de Jó deve estar ainda mais evidente em se tratando de um estudo que pretende contrapor um modelo bíblico genuíno ao modelo de cristão atual, maculado pelos pensamentos e práticas da pós-modernidade. Não será equívoco afirmar que o individualismo histórico conseguiu impregnar-se na cristandade atual, modelando uma espécie de fiel que aprendeu a obedecer apenas a ao primeiro e maior dos grandes mandamentos da lei, qual seja, “Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento” (Mt 22.37). Para a infelicidade de muitos, porém, a Escritura declara que é inválida a tentativa de se manter um relacionamento vertical na fé ao mesmo tempo em que se rejeita toda e qualquer forma de relacionamento horizontal com os nossos semelhantes (Mt 25 34.45). [2]
Esta coletânea de textos, portanto, demonstrará a partir do exemplo de Jó, que o modelo de cristão individualista e egocêntrico da época atual precisa ser transformado num modelo genuinamente bíblico, capaz de viver o evangelho inteiro, inclusive nos aspectos que dizem respeito ao nosso relacionamento com aqueles que, assim como nós, foram feitos à imagem e semelhança do Criador.
É importante de início observar-se que o altruísmo não era uma atitude característica apenas de Jó, conforme podemos aprender do seu livro, embora apenas ele o tenha sido em perfeita conformidade com a Escritura. Os amigos de Jó também demonstraram amor e compaixão pelo próximo ao aproximarem-se de dele para compartilhar a dor do patriarca de Uz. Diz-nos a Palavra de Deus que Elifaz, o temanita, Bildade, o suíta, e Zofar, o naamatita,
“concertaram juntamente virem condoer-se dele e consolá-lo. E, levantando de longe os olhos e não o conhecendo, levantaram a voz e choraram; e rasgando cada um o seu manto, sobre a cabeça lançaram pó ao ar. E se assentaram juntamente com ele na terra, sete dias e sete noites; e nenhum lhe dizia palavra alguma, porque viam que a dor era muito grande” (Jó 2.11,13).
Verdade é que por desconhecerem a Palavra do Senhor, ao mesmo tempo em que prestavam assistência à Jó acusavam-no de infiel a Deus, não medindo a dureza das suas palavras a fim de levarem Jó ao “arrependimento” (Jó 4.7; 8.4-6; 11.6).
O fato é que mesmo a compaixão manifestada insipientemente pelos amigos de Jó não é percebida com muita freqüência nos dias de hoje. Que se dirá do amor pelos que nos ofendem seja no trabalho, em casa, na rua ou até mesmo na igreja?
A época em que Jó viveu é freqüentemente mencionada como a era patriarcal. Donald Stamps, editor da Bíblia de Estudo Pentecostal, alista uma série de fatos, dentre eles a ausência de qualquer menção à lei mosaica, que “indicam que Jó viveu por volta dos tempos de Abraão (2000 a.C) ou até antes”.[3] Era, sobretudo, uma época em que a família patriarcal era a unidade social básica, na qual o pai era também o sacerdote responsável pelas atividades religiosas na sua família.[4] Conquanto não haja menção de leis locais que regulassem a vida da região, as atitudes de Jó para com os seus semelhantes demonstram uma séria representação de um perfeito sistema legal constituído. E não se tratava de um sistema legal humano, mas a própria lei de Deus escrita no coração do seu servo; aquela que existe perpetuamente, independentemente de sua representação escrita na posterior legislação mosaica. Nada mais coerente do que compreender, à maneira de Jó, que ser sábio é temer a Deus (Jó 28.28). Ao temer a Deus, o patriarca de Uz compreendia a vontade do Senhor, embora não houvesse nenhum sistema legal escrito pelo qual Jó viesse a se pautar, sobretudo em relação ao próximo. Jó, sem o auxílio de lei escrita, amava a Deus de todo o coração e ao próximo como a si mesmo.
O tratamento de Jó para com os seus semelhantes, sobretudo aqueles em condições desfavoráveis, pode ser observado no capítulo 29, nos versículos 12-17, onde está escrito:
“Porque eu livrava o miserável, que clamava, como também o órfão que não tinha quem o socorresse. A bênção do que ia perecendo vinha sobre mim, e eu fazia que rejubilasse o coração da viúva. Cobria-me de justiça, e ela me servia de veste; como manto e diadema era o meu juízo. Eu era os olhos do cego e os pés do coxo; dos necessitados era pai e as causas de que não tinha conhecimento inquiria com diligência; e quebrava os queixais do perverso e dos seus dentes tirava a presa.”
Esta atitude de Jó para com o seu próximo pode ser classificada em duas espécies de justiça: uma que pode ser considerada mais direta e pessoal, no sentido de que conta apenas com a vontade daquele que pratica a justiça, sem que se defronte com obstáculos externos, e uma outra, que para ser exercida precisa que haja um certo confrontamento com pessoas ou circunstâncias que impedem o exercício da justiça para com o que se encontra em situação desfavorável. Analisemos estas duas espécies de justiça.
A primeira espécie está identificada nas atitudes de, pessoal e diretamente, livrar o miserável, socorrer o órfão e a viúva, servir de guia ao cego e locomover os coxos em suas necessidades, e manter cuidado paternal pelos necessitados. São atitudes que não envolvem agentes externos na condição de terceiros, mas apenas aquele que precisa do auxílio e o que o pode prestar. Muitas vezes a necessidade de auxílio se evidencia pelo clamor feito pelo necessitado, conforme Jó 29.12. No caso do miserável, clamor por pão, abrigo ou auxílio nas enfermidades; a esses cuidados, nos casos do órfão e da viúva, soma-se uma ajuda direcionada a suprir a falta da família; no caso do cego e do coxo, soma-se ainda a ajuda na locomoção e auxílio para atividades que não podem exercer sozinhos; os demais necessitados podem clamar por uma infinidade de benefícios ausentes em sua vida.[5]
A outra espécie de justiça está identificada nas atitudes de Jó de, diante de terceiros, inquirir com diligência sobre as causas de determinadas pessoas, das quais o próprio Jó não tinha conhecimento e arrebatar a presa das garras do perverso.
Em relação a este ponto em particular é necessário que se compreenda que Jó mantinha o entendimento de que o ser humano é portador de vários direitos naturais, embora nenhum demagogo liberal os houvesse ainda apresentado. Jó fala de direitos dos servos (Jó 31.13) e acima de tudo reconhecia a igualdade entre todos os seres humanos, algo que posteriormente os liberais chamariam de isonomia, isto é, o princípio que considera todos iguais perante a lei. Era certamente em relação a esses direitos que Jó empreendia investigações, verificando o seu cumprimento na vida do seu próximo. No caso de opressões verificadas, Jó empreendia o livramento do oprimido. Não devemos entender aqui atitudes exercidas pelo uso de armas ou violência, mas simples exercício da justiça social ao alcance do servo de Deus. Para Jó isto não significava mera satisfação a um suposto ego seu humanista. Era acima de tudo uma compreensão de que agir de modo diferente seria pecado e Jó temia o castigo de Deus (Jó 31.23).
Essas verdades acerca do caráter do patriarca Jó contrastam com aquilo que tem sido a essência do modo de viver contemporâneo, pautado em ideais de consumo e isolamento, vale dizer, valores individualistas. E é claramente perceptível que a igreja do Senhor não está imune a tais valores, motivo pelo qual as atitudes de Jó contrastam tanto com a nossa vivência de cristãos hoje.
Cabe ainda observar que esta descrição de Jó de sua integridade num momento de questionamento interior sobre quais seriam as suas falhas não são meras alegações de sua condição espiritual diante de Deus. Ao fim do grande sofrimento de Jó, Deus dirá que, diferentemente dos seus amigos, o patriarca de Uz foi o único que falou o que era reto a respeito de Deus (Jó 42.8), sendo que aqueles, por terem se equivocado em suas palavras, cometeram loucura que careceu de expiação através de holocaustos (v.42). Sempre cometemos loucura quando prescindimos da Palavra de Deus em qualquer aspecto de nossa vida diária. Lembremo-nos disso.


[1] Este texto faz parte de uma coletânea que discute, desde as situações práticas vivenciadas por Jó até a atualidade, as discrepâncias existentes entre uma prática do altruísmo genuinamente bíblica, como é o caso dos exemplos vivenciados por Jó, e um atual modelo cristão de altruísmo permeado pelos pensamentos e práticas da pós-modernidade. O próximo texto a ser postado neste blog dará continuidade ao estudo do altruísmo bíblico a partir de uma análise feita sobre o assunto na Lei do Antigo Testamento.
[2] Dennis MCNUTT, em Política para Cristãos (e outros pecadores), in: Michael PALMER. (Ed.) Panorama do Pensamento Cristão. 1ª Ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2001, p. 430 e 431, afirma que os cristãos agem em relação aos dois grandes mandamentos baseados no fato de serem ou teologicamente conservadores ou liberais. Segundo o autor “os conservadores teológicos – evangélicos fundamentalistas, pentecostais e carismáticos – parecem levar o primeiro mandamento mais a sério do que o segundo”, enquanto “os teológicos liberais são inclinados a ouvir a chamada da Bíblia para a justiça social, mas não tendem a preocupar-se demais com a devoção pessoal.” Para McNutt “Uma vida cristã plena tem de reconhecer que tanto nosso relacionamento com Deus quanto nosso relacionamento com os outros, pessoal e politicamente, são partes essenciais da vida cristã” (p. 431).
[3] Bíblia de Estudo Pentecostal. Rio de Janeiro: CPAD, 1995, pág. 767.
[4] Idem, ibidem, p.767.
[5] É evidente que em todos estes casos o ajudador também precisa prestar um auxílio espiritual ao seu próximo, sobretudo pelo fato de que muitas vezes a deficiência de algum bem chega a ocasionar fraqueza espiritual, isto é, desânimo, incredulidade e desespero, decorrentes de uma fé que foi abalada pelo sofrimento experimentado. No caso de infiéis, deve-se pregar a Cristo, o qual consolará o sofredor.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

OS CRISTÃOS E A POLÍTICA

Temos presenciado nos últimos anos uma entrada relativamente considerável de evangélicos na política seja nacional estadual ou municipal. Enquanto para alguns cristãos[1], participar das instâncias de poder na Terra poderia parecer uma materialização forçada de algumas promessas divinas, para alguns outros, ter acesso a essas instância é um imperativo atual, considerando-se que todos os demais grupos estão representados nas câmaras municipais, assembléias ou mesmo no congresso federal. Há ainda aqueles que relacionam diretamente a política ao mal, como se essa esfera de ação humana fosse algo totalmente pertencente a Satanás, sendo impossível ao cristão inserir-se na política sem perder a sua salvação. Um último grupo de pessoas considera que a política é para o cristão uma forma bem mais ampliada de se fazer o bem e a justiça no mundo.[2] Mas afinal, como os cristãos devem considerar a política?
 
Em primeiro lugar é importante aceitarmos que o fato de a Bíblia dizer que “a nossa cidade está nos céus” (Fp 3.20) não justifica que abdiquemos de nossa cidadania terrena, embora nesse ponto realmente pequem aqueles que vêem na detenção de poderes terrenos a materialização da promessa divina de herdar a terra (Mt 5.5; Sl 37.9). Ainda que o Senhor nos conceda o acesso a poderes terrenos devemos considerar a transitoriedade desse poder e os males relacionados a ele e, assim como Paulo, acreditar realmente que “a nossa cidade está nos céus” (Fp. 3.20).

 
Em relação ao segundo grupo de cristãos, que considera a necessidade da representação política num país marcadamente plural, como é o caso do Brasil, podemos afirmar que esses cristãos realmente têm razão quando afirmam isso. Precisamos de cristãos que defendam leis justas e que combatam leis que contrariem a vontade de Deus em todas as esferas decisórias de poder político. A questão é se realmente a intenção dos cristãos em se fazerem representar está fundamentada na necessidade de leis justas e do exercício da justiça social num país marcadamente desigual como o Brasil.

 
Ainda sobre os que consideram a política como uma esfera de poder exclusivamente sob o domínio de Satanás, não cabendo ao cristão inserir-se nela, afirmo que tal visão é absurda e só contribui para a desgraça do mundo. Contrariamente a essa postura a Escritura nos garante que “quando os justos se engrandecem, o povo se alegra, mas, quando o ímpio domina, o povo suspira” (Pv. 29.2; 11.10; 28.12). Devemos entender aqui que a Bíblia se refere ao governo dos justos em contraposição ao governo dos ímpios. A última posição – que afirma que a política é uma forma bem mais ampliada de se amar o próximo – será considerado mais adiante no decorrer do texto.

 
Cumpre assinalarmos, neste momento, que a mera chegada dos cristãos ao poder talvez ou certamente não mudaria em muito as coisas. Nancey Pearcey, ao mesmo tempo em que fala da crescente politização dos cristãos no seu país, ocorrida nos últimos anos, lamenta o fato de que os resultados não são muito satisfatórios, pois segundo ela “a política tende a espelhar a cultura e não o contrário”.[3] O que a escritora quer dizer é que muito do que acontece hoje no mundo, inclusive no meio político, não é resultado do fato de os governantes serem ou não cristãos. E é exatamente neste momento em que devemos questionar sobre os motivos que estão levando nossos irmãos em Cristo a concorrerem a cargos públicos. Seria apenas o desejo do poder em si mesmo? Ou estaríamos apenas inquietos pelo fato de que somente os outros grupos estariam tendo acesso às instâncias de poder? Por acaso estamos enciumados por não podermos participar da indicação, ao lado dos demais grupos, de cargos de alto ou segundo escalão ou por não estarmos tendo participação na distribuição ou interceptação de verbas públicas? Estaríamos meramente almejando os postos de coronéis regionais ocupados, muitas vezes, apenas por católicos, maçônicos ou outros grupos-não cristãos? Essas questões são pertinentes porque, conforme mencionou a autora, a política tem o modo de ser ditado pela cultura. Noutras palavras, as regras políticas em sua quase totalidade destoam dos princípios bíblicos de amor, justiça, honestidade e humanização dos povos, ou seja, não é a Escritura o substrato teórico e prático do mundo da política, mas o são exatamente os princípios filosóficos ateístas, dentre os quais podemos destacar o pragmatismo, o qual ensina que não há um “certo” ou um “errado” senão do ponto de vista prático.[4] É neste sentido que Pearcey afirma que a politização dos cristãos nos últimos anos fracassou. Isto é, os cristãos lutam pelo poder mas utilizam as mesmas armas para tanto, e, uma vez no poder, assimilam a mesma cultura política fundamentada em pressupostos antibíblicos que não contribuem para a anunciação do evangelho, muito menos para o bem da sociedade.

 
A partir da reflexão feita sobre o texto de Pearcey percebemos que precisamos de política, de fazer política e estarmos inseridos na política. O que deve mudar, entretanto, é a nossa visão sobre a política. Não devemos vê-la apenas enquanto espaço de disputas com os não-cristãos ou não-evangélicos, muito menos utilizá-la como forma de enriquecimento próprio ou de favorecimento de alguns grupos em detrimento de outros. Devemos utilizá-la para implantar a justiça entre os homens, anunciando, assim o evangelho de Cristo e, conseqüentemente, transformar a cultura. Sob esta ótica percebemos que não é nem mesmo necessário concorrer a cargos eletivos para cumprir com estes objetivos, embora ascender a postos políticos em muito contribua para tanto.

 
Utilizemos três exemplos para ratificar a idéia de que é possível fazer política justa tanto no exercício de cargo político como fora dele. Comecemos por Daniel. O profeta demonstrou que no exercício de um alto cargo político é possível anunciar o reino de Deus. Mas para isso ele não precisou de atitudes desonestas para ser escolhido para o cargo, nem participar da mesa idólatra e corrupta dos outros poderosos para se manter no poder (cf. Dn 2.48; 6.1 e 2; cap. 5). Agora perguntemo-nos: que métodos de campanha nossos candidatos cristãos utilizam? Estariam eles, a exemplo de como fazem os não-cristãos, por ocasião da realização de campanhas eleitorais, burlando as leis e comprando votos, fazendo promessas desonestas e enganadoras com o fim de arregimentar votos de pessoas simples e necessitadas de políticas públicas justas? E uma vez no poder, será que exercem a justiça, embora o fruto de tal virtude ou princípio não lhe agrade ou ameace sua permanência? Ou será que fazem parte de conluios que não têm em vista outro objetivo senão o enriquecimento próprio em detrimento do pão do pobre e do necessitado? Será que estão comprando o pobre por dinheiro e os necessitados por um par de sapatos (Am 8.6)? Estariam decretando leis injustas “para prejudicarem os pobres em juízo, e para arrebatarem o direito dos aflitos do meu povo...?” (Is 10.1 e 2). Infelizmente esse quadro é bem conhecido de nós, evangélicos, pois muitos dos nossos irmãos agem assim tanto no período de campanha eleitoral como depois de chegarem ao poder. E uma outra pergunta seria: é certo, do ponto de vista bíblico agir assim? Certamente que não. Mas os que assim fazem dirão: é possível chegar no poder e lá se manter de outra forma? Digamos que se Deus concedeu a José e a Daniel chegarem lá vivendo piamente e lá permanecerem sob a mesma piedade Ele nos ajudará a chegarmos lá também, se piamente agirmos nas campanhas eleitorais e no exercício do mandato.

 
Vejamos agora exemplos de como podemos ser políticos ou fazer política mesmo sem dispor de um cargo público. Tomemos o exemplo de Jó ou o exemplo dos primeiros cristãos, que viviam sob o cruel império romano dos primeiros séculos da era cristã. A Bíblia não diz que Jó dispunha de cargos políticos. Mas diz que ele “livrava o miserável, que clamava, como também o órfão que não tinha quem o socorresse” (Jó 29. 12). Diz ainda que Jó cobria-se de justiça e ela lhe era por veste (v. 14); que ele “era o olho do cego e os pés do coxo; dos necessitados era pai e as causas de que não tinha conhecimento inquiria com diligência; e quebrava os queixais do perverso e dos seus dentes tirava a presa” (v. 15-17). Ora, e isso não é fazer política, se considerarmos que agir politicamente envolve inclusive o embate com os poderes públicos na busca de justiça social para os pobres e necessitados? É impressionante como nunca somos ensinados nas igrejas a agirmos da mesma maneira que Jó. Observemos novamente o seu exemplo. Jó não estava apenas envolvido em atitudes de auxílio àqueles que por condições físicas ou sociais encontravam-se em situações difíceis. O patriarca de Uz algumas vezes precisava enfrentar os poderosos para poder resolver certas causas dos menos favorecidos. Para tanto, primeiramente Jó tomava conhecimento das situações opressivas para, em seguida, procurar resolvê-las. Dennis McNutt nos adverte que “o evangelho nos exige uma espiritualidade pessoal e pública”.[5] E na condição de “cristãos preocupados com a esfera pública, não devemos nos conformar só com atos individuais de decência e caridade para com o próximo”.[6] Precisamos, pois, mesmo na condição de cidadãos comuns, lutar por melhores condições coletivas de vida.

 
Mas vejamos ainda algo sobre os primeiros cristãos, conforme adiantamos acima. Em primeiro lugar lembremo-nos de que o modo de vida dos cristãos primitivos era eminentemente comunitário (cf. At. 2.42-47). Relutamos em aceitar isso como válido para os nossos dias, caracterizados que são pelo clima de individualismo que desde o surgimento da era moderna nos despiu de qualquer vestígio de comunitarismo. Entretanto esta atitude comunitária e altruísta viria a impressionar o império romano fazendo-o, inclusive, a também praticar o bem. Eduardo HOORNAERT, historiador, chega mesmo a, equivocadamente, atribuir a sobrevivência do cristianismo em pleno império romano ao seu modo de viver comunitário e altruísta. Sabemos, entretanto, que a sobrevivência do cristianismo é um projeto de Deus, embora isto não nos exima de viver de forma genuinamente cristã, isto é, amando em palavras, em atos e em verdade. O historiador, pois, observa que, naquela época os cristãos se davam mutuamente apoio moral, por ocasião de interrogatórios diante das autoridades romanas, visitavam os presos, prestavam assistência psicológica aos desesperados, alimentavam órfãos e viúvas, eram hospedeiros, criavam caixas de ajuda para momentos de urgência. Segundo ainda o autor, estas práticas continuaram ainda nos séculos subseqüentes ao século III, a ponto de o imperador Juliano, que tentou reprimir o cristianismo num império já oficialmente cristianizado, recomendar as autoridades locais que criassem “centros de assistência social e hospedagem como um dique contra a avassaladora penetração do cristianismo em meios populares”.[7]

 
Os exemplos dos primeiros cristãos, alistados acima, demonstram atitudes de altruísmo que transcendem o nível das ações individuais. Eles agiam em prol não de indivíduos isolados, mas em favor das comunidades inteiras, beneficiando, inclusive os próprios romanos. Agir coletivamente ou tendo em vista o bem coletivo é agir politicamente. Podemos, portanto, ser políticos e fazer política mesmo sem exercermos cargos políticos. O impressionante é que quando os cristãos fazem o bem os não-cristãos também são impulsionados a fazê-lo, embora muitas vezes o façam com outras intenções, como é o caso referido acima do imperador Juliano. Podemos inferir desses exemplos, pois, que quando agimos de forma cristã na política o evangelho é anunciado e é produzida uma contracultura cristã.

 
Agora nos questionemos: como é que temos agido em nossas comunidades? Temos considerado os problemas sociais como algo de nossa responsabilidade ou acreditamos que o chamado de Cristo não tem nada a ver com isso? Pensemos agora na política partidária propriamente dita: de que forma temos considerado a responsabilidade do voto? Minhas escolhas têm levado em consideração o bem da coletividade ou tenho buscado os meus próprios interesses? E finalmente: tenho evangelizado alguém através do modo como considero as minhas responsabilidades diante dos problemas da comunidade? Minhas atitudes têm feito as pessoas blasfemarem de Cristo ou elas têm sido impulsionadas a fazerem o bem e louvar a Deus?

 
É... política é muito mais do que tudo aquilo que temos considerado até aqui. Então, a título de conclusão é melhor aprendermos que ser cristão é seguir a Cristo em qualquer situação ou aspecto da vida cotidiana, inclusive na política. Precisamos abdicar da falsa crença de que “o cristianismo é restrito a uma área especializada de crença religiosa e devoção pessoal” [8] e começarmos a agir cristãmente diante do mundo. E a propósito do tema, é melhor começarmos pela política.

 
Francisco Sulo
Esperantina, 30 de setembro de 2009.
[1] O termo cristão, utilizado por mim neste texto, refere-se especificamente à nação evangélica.
[2] Cf. Dennis MCNUTT. Política para Cristãos (e outros pecadores). In: Michael PALMER (ed.). Panorama do Pensamento Cristão. 1ª edição. Rio de Janeiro: CPAD, 2001.
[3] Nancy PEARCEY. Verdade Absoluta. 1ª Ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2001, p. 20.
[4] Cf. William JAMES. Pragmatismo. São Paulo: Martin Claret, 2005. O grande pragmatista americano, William James, ao tratar da sua doutrina, disse: “Estou bem certo de quão singular deve parecer a alguns dos presentes escutar-me dizer que uma idéia é verdadeira na medida em que acreditar nela é proveitoso para nossas vidas” (p. 38).
[5] Dennis MCNUTT. Ibidem, p. 432.
[6] Idem, ibidem, p. 433.
[7] Cf. Eduardo HOORNAERT. As Comunidades Cristãs dos Primeiros séculos. in: Jaime PINSKY e Carla B. PINSKY. História da Cidadania. São Paulo: Cortez, p. 90 e 92.
[8] Nancy PEARCEY. Ibidem, p. 21.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Antiintelectualismo

Francisco Sulo[1]
Vivemos uma era de paradoxos. Um desses paradoxos está relacionado ao modo como se lida com o conhecimento nos últimos tempos. Por um lado temos a chamada “sociedade da informação” ou sociedade do conhecimento”, caracterizada pela ampla difusão do saber, levada a cabo pelo avanço da tecnologia informacional. Não obstante a veiculação em massa do saber assistimos à demência de grande parte das pessoas em processar essas informações divulgadas pelos meios de comunicação, transformando-as em conhecimento sólido, digno de veracidade. Enquanto muitos recebem sem criticidade as informações veiculadas, comprometendo assim as suas crenças fundamentais sobre o universo e o homem, muitos outros ainda se mantêm distantes dessa sociedade do conhecimento. Noutras palavras, há muita informação veiculada mas há também, sobretudo entre as massas de países que não acompanharam o processo de industrialização ou mesmo entre os que estão em pleno processo, como é o caso do Brasil, um sentimento de repúdio ao saber que podemos denominar de antiintelectualismo.
Neste contexto cumpre à Igreja realizar uma reflexão sobre o processo educacional cristão no sentido de perceber as conseqüências que o antiintelectualismo traz para os fiéis, considerando-se que a Igreja do Senhor não está imune a esse mal. Para Valmir Nascimento, educador cristão, “esse mesmo espectro de antiintelectualismo surge freqüentemente para perturbar a igreja cristã, fazendo-a descrer tanto do ensino teológico sistematizado quanto da educação secular’.[2]
Não é raro vermos irmãos enfastiados da leitura e do ensino da Palavra de Deus, assim como é raro vermos um estudante secular verdadeiramente dado aos livros e aos estudos intensos. Pesquisa recente afirmou que o aluno brasileiro lê voluntariamente em média 1,7 livros por ano, motivo pelo qual esses mesmos alunos figuram entre os mais baixos níveis de compreensão e interpretação de textos em avaliações internacionais, como o Pisa.[3] Infelizmente, dentre esses mesmos alunos, aqueles que freqüentam a igreja mantêm a mesma apatia para com a Bíblia Sagrada e os ensinos da Palavra de Deus, sem falar da oração, do jejum e da consagração a Deus, práticas desprezadas pelos jovens destes últimos dias.
Este contexto de intelectualidade impõe à igreja, e especialmente à EBD, a preocupação para com a educação cristã, sobretudo quando se têm em mente que os cristãos precisam em todo o tempo “batalhar pela fé que uma vez foi dada aos santos” (Jd v.3) e estarem “sempre prontos para responder com mansidão e temor a qualquer que vos pedir a razão da esperança que há em vós” (1 Pe 3.15). E se o cristão precisa estar inteirado da Palavra de Deus, através de meditações individuais ou ao ouvir preleções no templo, é também verdade que a Igreja precisa incentivá-lo na vida de estudos secular, para que os jovens cristãos também conquistem o seu espaço no mundo do trabalho e nas instâncias de poder do país.
Uma razão especial para que os cristãos não estejam de acordo com um “cristianismo de mente vazia” é a necessidade cada vez mais premente de se enfrentar a enxurrada de filosofias e conceitos ateístas e prejudiciais à fé que estão ocupando o cenário atual seja nas escolas ou até mesmo no interior das comunidades cristãs. César Moisés Carvalho, pastor, pedagogo, escritor, articulista e conferencista cristão, nos diz que precisamos “criar uma contracultura, ou seja uma ‘cultura com o fim de combater os valores culturais vigentes’”.[4] Para tanto faz-se necessário, diz o autor, produzirmos cultura cristã, “oferecer pasto para as ovelhas em vez de simplesmente uma cerca de arames farpados”.[5]
Somando-se a uma vida de oração, jejum e consagração uma atitude de deleite nos estudos bíblicos, evidentemente que o nível de espiritualidade da Igreja e as bênçãos do Senhor crescerão significativamente. É importante também enfatizar que estes aspectos da fé estão intrinsecamente relacionados, isto é, a própria prática de oração e jejum poderão ser resultados de uma maior dedicação aos estudos bíblicos, enquanto que a fome e sede da palavra de Deus poderá ser também suscitada pela dedicação que alguém dá ao tempo de oração e jejum. Uma visão reducionista poderá privilegiar apenas um desses aspectos, o que seria um equívoco.
Tomado dessa perspectiva, o progresso da Escola Bíblica Dominical poderá ser conseguido e poderão se vislumbrar, a partir daí, classes mais lotadas e ansiosas tanto para aprender de Deus quanto para ensinar às pessoas não-cristãs as verdades da salvação.
[1] Superintendente de EBD.
[2] Ensinador Cristão, nº 30, CPAD, p. 27.
[3] http://www.anj.org.br/jornaleeducação
[4] Ensinador Cristão, nº 30, CPAD, p. 9.
[5] Idem, ibidem.