domingo, 30 de janeiro de 2011

Devemos Subserviência à Lei do Antigo Testamento? (Extraído do livro "Salvos sim, graças a Deus", de minha autoria)

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Se a justiça provém da lei,
Segue-se que Cristo morreu debalde.
Gl 2.21b

1.      Introdução
Segundo o Adventismo do Sétimo Dia “a guarda da lei de Deus, por um lado, e sua violação, por outro, deverão assinalar a distinção entre os adoradores de Deus e os da besta”.[i] É evidente que neste texto os adventistas fazem menção da não observância do sábado pela maioria cristã, o que para eles significa desobediência expressa à lei de Deus, aquela dada no Sinai, e, conseqüentemente, anuência ao sistema religioso da besta.
Em face desta acusação, precisamos nos perguntar: devemos, portanto, servidão à lei do Antigo Concerto, dada no Sinai?
Neste capítulo estudaremos sobre a lei do Antigo Testamento e sua relação com o crente em Cristo, no intuito de retirar conclusões bíblicas que nos corrobore a eficácia da salvação pela fé em Jesus Cristo, sem as obras da lei (Gl 2.l6).
2.      A Lei do Antigo Testamento
A sistematização de um código tanto moral quanto cerimonial e civil para o povo hebreu teve sua razão de ser na constituição mesma desse povo enquanto propriedade peculiar de Deus (Ex 19.5,6). Israel, enquanto povo do Senhor, recebia, a partir de então, a incumbência de lhe ser por “reino sacerdotal e povo santo” (v. 6). Neste contexto, a instituição da lei tinha a função de expressar a Israel a sua obrigação para com Deus, como reivindicação do concerto feito no Sinai, isto é, “ela expunha as condições do concerto a que o povo devia obedecer por lealdade ao Senhor Deus, a quem eles pertenciam”.[ii]
A lei também tinha a função de: expressar “a natureza e o caráter de Deus, i. e., seu amor, bondade, justiça e repúdio ao mal”;[iii] de instituir o sistema de sacrifícios, “mediante os quais, o transgressor da lei obtinha o perdão , quando buscava a misericórdia de Deus, com sinceridade, arrependimento e fé, conforme a provisão divina expiatória mediante o sangue”;[iv] de servir de “aio, para nos conduzir a Cristo” (Gl 3.24) e, ainda, para revelar o pecado resultante da transgressão da lei, para o qual deveriam perceber-se como tendenciosos (Rm 7.7) e, portanto, dependentes de Deus.[v] 
2.1 Uma única lei, cumprida por Cristo
A lei apresentava um tríplice aspecto: moral, civil e cerimonial, pois dizia respeito à constituição de um povo que devia ser santo como Deus é (Lv 19.2), ao mesmo tempo em que também tinha a função de organizar a vida jurídica, social e religiosa de Israel.[vi]
Não obstante essa divisão interna, nunca chegou a haver uma designação “lei” para se referir apenas a estes ou aqueles mandamentos ou preceitos. Na verdade era apenas uma única lei (Dt 31.26; Js 1.8) que apesar de englobar também preceitos morais, foi completamente cravada na cruz (Cl 2.14), não pelo fato de serem estes preceitos morais imperfeitos ou temporais, mas por serem sozinhos incapazes de conduzir alguém à salvação sem a graça e a misericórdia de Deus (Rm 3.21,22). Doutra forma, para que a morte de Cristo? (Gl 2.21).
Embora isto seja verdade, para os adventistas apenas o decálogo constitui a lei moral de Deus, não tendo sido também cravado na cruz, por ocasião da morte de Cristo e da instituição do Novo Concerto. (Hb 8.13; 2 Co 3.14). Ou seja, para eles havia duas leis distintas, a que denominam cerimonial e o decálogo, que corresponde aos dez mandamentos, isto é, a lei moral,  sendo que, segundo eles, apenas a lei cerimonial foi cravada na cruz e, portanto, abolida. Entretanto a Bíblia diz que o próprio decálogo, isto é, as pedras lavradas com os dez mandamentos, era o concerto (cf. 2 Rs 6.11), posteriormente substituído por “um melhor concerto, que está confirmado em melhores promessas” (Hb 8.6).
Faz-se necessária, entretanto, a compreensão de que Paulo, ao referir-se à “cédula que era contra nós” (Cl 2.14) e que foi cravada na cruz por Cristo, não queria ensinar que a lei foi abolida porque os seus mandamentos e preceitos fossem moralmente incorretos, mas apenas insuficientes por si mesmos para a salvação. Assim, todos os preceitos morais de Deus, espelhos de seus atributos eternos e imutáveis, devem ser observados pelos cristãos de todos os tempos, o que de fato acontece à medida que cada um, guiado pelo Espírito Santo (Gl 5.18), produz os Seus frutos, conforme descritos em Gl 5.22,23, os quais são totalmente coerentes com o aspecto moral da lei de Deus, e aos quais esta mesma lei não se contrapõe (v. 23).
Sob o ponto de vista bíblico de uma lei una não há a necessidade de se estabelecer divisões nela e prescrever ordenanças que nem mesmo Jesus o fez para nós. Na verdade, nem mesmo o Senhor fez distinção de leis, mas falou apenas da “lei”, incluindo no termo tanto mandamentos do decálogo (Mt 5.21,27) quanto de fora dele (v.31,33,38 e 39). Quando o doutor da lei o experimentava, questionando qual era o grande mandamento da lei, não fez especificação sobre se de lei moral ou cerimonial, pois era comum verem a lei como um todo de preceitos e mandamentos unidos (Mt 22.35). Mesmo no Antigo Testamento há evidências de que a lei era vista como algo além do decálogo. Alías, muitos se referiam a ela como um livro (Dt 31.26; Js 1.8; 2 Rs 22.8,10,11 e 13).
Um outro argumento adventista em favor da idéia de abolição apenas da parte cerimonial da lei, isto é, dos preceitos que não constavam do decálogo, é a utilização do termo “mandamentos” que, segundo eles, diz respeito apenas ao decálogo. Por exemplo, quando Paulo diz que tanto a incircuncisão quanto a circuncisão nada são, mas sim a observância dos mandamentos de Deus (1 Co 7.19), subentendem aí a observância apenas dos mandamentos contidos nas tábuas, sem que destes se excetue o sábado. O mesmo entendimento depreendem de Apocalipse 12.17.
Convém, entretanto, compreender que o termo mandamento tinha uma abrangência muito maior. Senão vejamos: quando os judeus que retornaram do cativeiro começaram a casar-se com mulheres estranhas, Esdras, sacerdote do Senhor, humilhou-se diante de Deus, questionando com lamentação: “Tornaremos, pois, agora a violar os teus mandamentos?” (Ed 9.14). E a proibição de casar-se com mulheres estranhas, transgressão a que Esdras se referia, não consta do decálogo, o que ratifica a idéia, oposta àquela dos adventistas, de que são mandamentos apenas aqueles que constam do decálogo. O mesmo uso do termo aparece no texto paulino de 1 Coríntios, quando Paulo diz aos irmãos que tenham decência e ordem no uso dos dons espirituais no culto. Ao término das recomendações diz o apóstolo: “reconheça que as coisas que vos escrevo são mandamentos do Senhor” (v.37, grifo nosso). E é fato sabido que estas recomendações também não constam do decálogo e, mesmo assim, foram denominadas de mandamentos. Aliás, nem mesmo Moisés fez uso da palavra mandamentos referindo-se apenas ao decálogo. Após vários preceitos relacionados a votos e resgates no capítulo 27 de Levítico, o escritor encerra-o assim: “Estes são os mandamentos que o SENHOR ordenou a Moisés, para os filhos de Israel, no Monte Sinai” (v.34, grifo nosso). E, definitivamente, esses preceitos sobre votos e resgates também não constam do decálogo.
Portanto, o uso restrito do termo mandamento para designar apenas os preceitos do decálogo é uma proposição adventista exclusivista, que pretende prescindir de todos os outros ensinamentos do Antigo Testamento em favor apenas das dez palavras. Por outro lado pretendem com a validação apenas do decálogo impor o sábado a todos os cristãos. Devemos levar em conta, entretanto, que embora o sábado conste do decálogo não tem a grandeza dos princípios morais de Deus expressos não apenas nos dez mandamentos, mas em toda a extensão da Bíblia Sagrada, sendo que sua menção está relacionada apenas à história do povo hebreu (Êx 31; Ez 20.20).[vii]
3.      Não estamos sem lei.
A esta altura alguém poderá acusar-nos de anárquicos, por conta do nosso discurso em relação à lei do Antigo Testamento. Entretanto, assim como aqueles homens que viveram antes do Sinai não estavam sem lei, também nós não estamos sem lei, pois nem agora nem em nenhum outro momento da história da criação de Deus faltaram princípios morais que a regesse, a menos que consideremos os princípios morais de Deus como algo temporal. E considerar que esses princípios morais tiveram um início é pressupor que em determinado momento algo moralmente ruim fosse permitido por Deus. Não foi porventura a falta de amor a Deus que ocasionou o orgulho e a conseqüente ruína de Lúcifer (Is 14.12-15; Ez 28.12-15; Lc 10.18)? E não foram a inveja e o ódio ao próximo que levaram Caim a matar seu irmão Abel (Gn 4.2-8)? E por que o Senhor puniu a Faraó por desejar a mulher de Abraão, seu servo (Gn 12.17)? Logo, já existia uma lei de Deus formada de mandamentos morais eternos e imutáveis mesmo antes do Sinai. O Senhor mesmo referiu-se a ela ao dizer a Isaque que “Abraão obedeceu à minha voz e guardou o meu mandado, os meus preceitos, os meus estatutos e as minhas leis” (Gn 26.5). É evidente que o Senhor não se referia aqui à lei dada no Sinai, embora muitos dos mandamentos contidos na lei Mosaica façam parte da eterna e imutável lei de Deus, existente antes e depois do Sinai, posto que atemporal e universal (Sl 19.7; Is 40.8).
Isto posto, o fato de a Lei do Antigo Testamento ter sido cumprida por Cristo na cruz não quer dizer que tenha se tornado inválida, ou que vivemos sem lei (2 Co 9.21). Todos os preceitos eternos e morais de Deus devem ser observados na vida do crente em Cristo, pois em nenhum momento haverá permissão para se matar o próximo, desejar seus bens ou ignorar a Deus, posto que se revelou a todos (Rm 13.8-10; 1 Jo 5.1; Rm 1.21).
A aparente contradição está no modo como nos relacionamos com a lei. Conforme observa Champlin:
“Não estamos sob o código mosaico no sentido de que nossa motivação e nossos princípios de ação (ou a capacidade inerente) sejam inspirados ou estejam contidos naquele código. Nossa motivação e nossa capacidade vêm do Espírito, e conseqüentemente estamos debaixo de sua lei, conforme indica Rm 8.2. Mas o Espírito nos capacita a fazer precisamente aquilo que Moisés incluiu em seu código. Portanto, não há qualquer contradição quanto à essência, mas somente sobre como devemos cumprir essas coisas”.[viii]
            E é importante observar que essa motivação do Espírito em nós para cumprirmos a lei de Deus não nos conduz ao legalismo, formalidades, meras observâncias. Daí que a mensagem do evangelho não nos obriga ao sábado, nem a restrições alimentares (excetuadas aquelas feitas por Paulo em Rm 14 e 1 Co 8 aos cristãos gentios que convivam com cristão judeus) ou outras observâncias do Antigo Testamento. O mesmo Espírito Santo nos é dado não pela observação de cerimônias, mas pela fé (Gl 3.2). Por sua vez o Espírito nos conduz pela lei de Cristo, cultivando em nós o Seu fruto, contra o qual não há lei, posto que é conforme a lei moral de Deus (Gl 5. 22,23). Isto posto, não estamos sem lei, mas sob a lei de Cristo (1 Co 9.21; Gl 6.2).
4.      Conclusão
A Lei do Antigo Testamento não veio demonstrar que antes não havia lei. Pelo contrário, veio cumprir com os propósitos de Deus concernentes ao concerto estabelecido com Israel no Sinai, isto é, cobrar dos hebreus a obediência devida pela instituição do pacto ao mesmo tempo em que lhes mostrava a sua condição de transgressores e, conseqüentemente, de seres dependentes da graça de Deus (Rm 7.7).[ix]  A lei era transitória (2 Co 3.11) pois apontava para a necessidade de um salvador – Cristo – , que justificasse a todos pela fé (Gl 3.23,24) e nos enviasse o Espírito Santo, que por sua vez imprimiria em todos a graça para fazer a vontade de Deus (Gl 4.6; Jo 14.26).
Na lei pedia-se que Deus se afastasse por conta de ninguém poder satisfazê-lo na condição de pecador; na dispensação da graça e na força do Espírito Santo clamamos “Aba, Pai!” (Gl 4.6), termo este que “expressa a grande intimidade, a profunda emoção, o anelo, o afeto e a confiança mediante os quais o Espírito Santo nos leva a clamar a Deus (Mt 14.36; Rm 8.15,26 e 27)”.[x]
Sujeitar-se formalmente a observância da lei é abdicar desta graça e favor do Espírito; é aniquilar a justiça de Deus; é fazer vã a morte de Cristo; é cair da graça; é, lamentavelmente, estar separado de Cristo (Gl 2.21; 5.4).
Mas Cristo nos chama agora à liberdade. Não para pecar, mas para “com cara descoberta, refletindo, como um espelho, a glória do Senhor, sermos transformados de glória em glória, na mesma imagem, como pelo Espírito do Senhor” (2 Co 3.17).


[i] Ellen G. White. O Grande Conflito (ed. Condensada), 1995, p. 205.
[ii] Donald C. Stamps (ed.). Bíblia de Estudo Pentecostal. 1995, p. 146.
[iii] Idem, ibidem, p. 146.
[iv] Idem, ibidem, p. 146.
[v] Cf. Op. cit., p. 147.
[vi] Stamps, Idem, ibidem, p. 146.
[vii] Cf. Norman L. Geisler e Ron Rhodes, Resposta às Seitas, 2001, p. 160-1. Para este autor faz-se necessário que haja uma compreensão de que o contexto de Israel era bem diferente do contexto do N.T., no que diz respeito à aplicação da lei.
[viii] R. N. Champlin e J. M. Bentes, Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia, vol. 1, 1995, p. 191.
[ix] Donald C. Stamps, Op. cit., p. 147.
[x] Idem, ibidem, p. 1799.