sábado, 2 de junho de 2012

A utopia política de G. K. Chesterton


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Embora de Chesterton eu só disponha da obra Ortodoxia, já pude escolhê-lo como um de meus autores preferidos, senão o principal. Sua escrita fascinante, posto que complicada, me cativou na primeira leitura, a ponto de eu, vez por outra, empreender uma releitura, ainda que não bem sucedida, de Ortodoxia.

Geralmente pra quem empreende releituras sem sucesso os primeiros capítulos das obras ficam bem mais conhecidos, pois é por onde iniciamos as releituras. No caso de Ortodoxia, isso vale também para um capítulo já mais avançado do livro, A Eterna Revolução, onde o autor expõe uma espécie de utopia política que me chamou bastante à atenção, dada a minha preocupação por essa área de atuação humana. Quando se trata da política segundo uma visão cristã ortodoxa, isso se torna ainda mais cativante.

Evidentemente que não conseguirei expor em toda a sua inteireza e profundidade, mesmo afirmando inicialmente tratar-se aqui apenas de uma simples resenha, da agudeza do pensamento de Chesterton expresso em A Eterna Revolução sobre a sua utopia politica. Ortodoxia é um livro carregado de analogias, exemplificações, ironias e expressões de uma riqueza linguística e intelectual muito profunda, o que torna qualquer tentativa minha de sintetizá-lo, mesmo que seja um único capítulo, por si só ofensiva e infiel ao grande gênio de Chesterton. A despeito disto, estou disposto a fazê-lo. Num momento posterior de meu desenvolvimento intelectual poderei melhor fazer jus às interpretações e descrições que esta obra requer.

Dentre outras proposições defendidas no conjunto de Ortodoxia, Chesterton chama à atenção para a necessidade de uma certa insatisfação que precisamos manter em relação às coisas da maneira em que se encontram.[1] Essa insatisfação, que por sua vez nos levará à atitude de querer mudar as coisas, precisa estar sustentada em alguns princípios e algumas exigências.[2] Os outros princípios, além do já citado (a insatisfação), são: “primeiro, que algum tipo de fé é necessário em nossa vida, até mesmo para melhorá-la;” segundo, um equilíbrio dentro de certas proporções, a propósito da convivência necessária entre contentamento e descontentamento, e, em quarto lugar, a verdade de que “precisamos gostar de outro mundo (real ou imaginário) para ter algo definido em que possamos transformar este mundo.”[3] Daí Chesterton optar pelo termo reforma, que segundo ele “significa que vemos determinada coisa fora de forma e queremos colocá-la em forma. E sabemos qual é a forma.”[4]

Mas o problema, lembra-nos Chesterton, é que o pensamento moderno do seu tempo prefere mudar indefinidamente a forma ideal, enquanto a realidade permanece a mesma sempre. Os homens de seu tempo não estão “alterando o real para que se adapte ao ideal”, mas “alterando o ideal: é mais fácil.”[5] Considerando, pois, que “enquanto a visão do céu estiver sempre mudando, a visão da terra será exatamente a mesma”[6], o autor chama-nos à atenção para a primeira exigência de sua utopia política: o ideal para o qual se direciona nossa noção de progresso deve ser fixo.[7]

À parte do ideal fixo todos os esforços humanos tornam-se infrutíferos,[8] daí a necessidade de um padrão eterno,[9] um ideal permanente[10] que subjaza aos nossos esforços de ordem moral ou política. Considerando que os homens não podem mudar o seu lugar de origem, embora alterem o de destino, cabe ao cristão empreender a eterna revolução, que nada mais é que uma perene tentativa de restaurar o estado de coisas à semelhança com um estágio anterior – o Éden.[11] De nada adianta, portanto, procurar princípios para o progresso a partir da natureza, pois os problemas humanos são problemas morais – é o problema do pecado.[12]

Mas Chesterton abre um parêntese para descartar a ideia de progresso como alteração automática do rumo das coisas, pois esse tipo de progresso não requer pessoas ativas, conquanto os processos históricos por si só evoluam ou avancem para um estado de coisas inexorável, à revelia das ações humanas. Dado, pois, o estado de corrupção das coisas do mundo humano, essa noção de progresso não serve, pois à acomodação própria dos que esperam o desenvolvimento do progresso corresponde uma intensificação do processo de degradação do mundo humano, ou como bem ilustra o autor, “se você abandona uma coisa à própria sorte, você a deixa à mercê de uma torrente de mudanças. Se você abandona um poste branco à própria sorte, ele logo será um poste preto.”[13]

Um segundo ponto em relação a essa noção de progresso é que ela pressupõe ser a melhoria muito simples, posto que natural.[14] Mas a argumentação de Chesterton leva-nos a compreender que o progresso tem que levar-nos a algo além da melhoria simples e automática resultante da ideia de um progresso natural. Tem que ser uma melhoria caracterizada pelo equilíbrio de proporções dos vários elementos envolvidos. Esse tipo de progresso, diferente de um mero arranjo natural que conduza a efeitos bizarros e imprevisíveis, envolve, pois, projeto divino ou humano.[15] Isto só pode ser assim, porque “a proporção não pode ser uma tendência: ou é um acidente ou é um plano.”[16] Esta composição de elementos numa proporção planejada é, pois, a segunda exigência de Chesterton para a sua utopia política, e a felicidade resultante dessa relação “deve ter sido fixada por alguma mente.”[17]

A terceira exigência de Chesterton é que “nós precisamos de vigilância até mesmo na utopia, para não cairmos fora da utopia, como caímos do Éden.”[18] Aqui temos a necessidade da eterna revolução, dada a velocidade com que as coisas humanas se deterioram.  “Uma vigilância quase antinatural é de fato exigida dos cidadãos por causa da horrível rapidez com que as instituições humanas envelhecem.”[19] Agora a eterna revolução exige de nós uma atitude de rebelião contra o conservadorismo que acredita que as coisas continuarão como são e contra tudo o que é novo mas que tende a degradar-se logo em seguida.[20]

A decadência constante do novo, ilustrada por Chesterton pela emergência de sistemas populares que logo se tornam opressores, é uma evidência de sua crença de que o problema reside de fato nos homens, conforme a doutrina do pecado original: “O cristianismo pronunciou-se de novo e disse: ‘eu sempre falei que os homens eram naturalmente reincidentes no erro; que a virtude humana por sua própria natureza tendia a enferrujar e corromper-se.’”[21]

É a partir da aceitação da doutrina do pecado original e da reincidência humana no erro que Chesterton também admite que a solução para os problemas políticos não está na melhoria das condições sociais e econômicas dos homens. “Se condições melhores tornarão os pobres mais aptos a governar-se a si mesmos, por que condições melhores já não deveriam tornar os ricos mais indicados para governá-los?”[22] A partir daí as conclusões do autor são as de “que é provável que os ricos não sejam moralmente dignos de confiança”[23] e que a autoconfiança[24] dos que se consideram capazes de governar os outros é o primeiro sinal de uma atitude anticristã e, portanto, inadequada para esta utopia política. Daí que Chesterton considere positiva a democracia, pois no próprio sistema de votação está implícita “a tentativa de obter a opinião daqueles que seriam modestos demais para manifestar-se.”[25]

A última exigência de Chesterton para a sua utopia política é que “exigiria ser obrigado a cumprir o meu contrato, a levar a sério os meus juramentos e compromissos; eu exigiria que a utopia vingasse a minha honra contra mim mesmo.”[26] Noutras palavras, “eu jamais poderia conceber ou tolerar nenhuma utopia que não me deixasse a liberdade que mais prezo, a liberdade de me obrigar.”[27]

A título de conclusão cumpre ressaltar que as respostas que Chesterton estabelece para o problema político no seu pensamento são também as mesmas respostas que sua investigação em busca da verdade percebe na ortodoxia cristã. Daí que sua concepção de utopia só possa ser relacionada com a Nova Jerusalém, que é também a resposta do cristianismo para a solução final dos problemas políticos da humanidade.

Com este texto também assumo que os graves problemas políticos do mundo que se sucedem ou eternizam na história da humanidade precisam ser assumidos enquanto problemas morais de seres humanos caídos de uma situação de graça e inocência anterior (Gn 1 – 3).

Insistirei, pois, em não desvincular das minhas discussões políticas a sempre evidente e aterrorizadora doutrina do pecado original, antagonizada apenas pela gratificante doutrina da remissão dos pecados em Jesus Cristo e do reino eterno – a Nova Jerusalém.


[1] CHESTERTON, Gilbert Keith. Ortodoxia. 1ª ed. São Paulo: Mundo Cristão, 2008, p. 167.
[2] CHESTERTON, ibidem, p. 168.
[3] Idem, ibidem, p. 169 e 174.
[4] Ibidem, p. 175.
[5] Ibidem, p. 175.
[6] Ibidem, p. 178.
[7] Ibidem, p. 178.
[8] Ibidem, p. 179.
[9] Ibidem, p. 180.
[10] Ibidem, p. 181.
[11] Ibidem, p. 182.
[12] Ibidem, p. 170, 182.
[13] Ibidem, p. 190.
[14] Ibidem, p. 183.
[15] Ibidem, p. 183.
[16] Ibidem, p. 186.
[17] Ibidem, p. 188.
[18] Ibidem, p. 189, 190.
[19] Ibidem, p. 190.
[20] Ibidem, p. 190, 191.
[21] Ibidem, p. 192.
[22] Ibidem, p. 194.
[23] Ibidem, p. 195.
[24] Ibidem, p. 197.
[25] Ibidem, p. 197, 198.
[26] Ibidem, p. 203.
[27] Ibidem, p. 202.

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