sábado, 10 de outubro de 2009

O Altruísmo de Jó (Este texto é parte integrante do meu pretenso livro "Altruísmo Bíblico", em fase de finalização)


“Se desprezei o direito do meu servo ou da minha serva, quando eles contendiam comigo... (...) Se retive o que os pobres desejavam ou fiz desfalecer os olhos da viúva; ou sozinho comi o meu bocado, e o órfão não comeu dele (...); se a alguém vi perecer por falta de veste e, ao necessitado, por não ter coberta; (...); se eu levantei a mão contra o órfão, porque na porta via a minha ajuda, então caia do ombro a minha espádua, e quebre-se o meu braço desde o osso. Porque o castigo de Deus era para mim um assombro, e eu não podia suportar a sua grandeza.” [1]
(Jó 31.13-23)
Qualquer estudo que se empreenda sobre o livro de Jó não deve deixar de levar em conta o fato de que o patriarca de Uz não era apenas um homem de fé, completamente devotado a Deus, mas também um homem que vivia a verdade bíblica em todos os aspectos de sua vida, inclusive no que diz respeito ao seu altruísmo.
Esta faceta da vida de Jó deve estar ainda mais evidente em se tratando de um estudo que pretende contrapor um modelo bíblico genuíno ao modelo de cristão atual, maculado pelos pensamentos e práticas da pós-modernidade. Não será equívoco afirmar que o individualismo histórico conseguiu impregnar-se na cristandade atual, modelando uma espécie de fiel que aprendeu a obedecer apenas a ao primeiro e maior dos grandes mandamentos da lei, qual seja, “Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento” (Mt 22.37). Para a infelicidade de muitos, porém, a Escritura declara que é inválida a tentativa de se manter um relacionamento vertical na fé ao mesmo tempo em que se rejeita toda e qualquer forma de relacionamento horizontal com os nossos semelhantes (Mt 25 34.45). [2]
Esta coletânea de textos, portanto, demonstrará a partir do exemplo de Jó, que o modelo de cristão individualista e egocêntrico da época atual precisa ser transformado num modelo genuinamente bíblico, capaz de viver o evangelho inteiro, inclusive nos aspectos que dizem respeito ao nosso relacionamento com aqueles que, assim como nós, foram feitos à imagem e semelhança do Criador.
É importante de início observar-se que o altruísmo não era uma atitude característica apenas de Jó, conforme podemos aprender do seu livro, embora apenas ele o tenha sido em perfeita conformidade com a Escritura. Os amigos de Jó também demonstraram amor e compaixão pelo próximo ao aproximarem-se de dele para compartilhar a dor do patriarca de Uz. Diz-nos a Palavra de Deus que Elifaz, o temanita, Bildade, o suíta, e Zofar, o naamatita,
“concertaram juntamente virem condoer-se dele e consolá-lo. E, levantando de longe os olhos e não o conhecendo, levantaram a voz e choraram; e rasgando cada um o seu manto, sobre a cabeça lançaram pó ao ar. E se assentaram juntamente com ele na terra, sete dias e sete noites; e nenhum lhe dizia palavra alguma, porque viam que a dor era muito grande” (Jó 2.11,13).
Verdade é que por desconhecerem a Palavra do Senhor, ao mesmo tempo em que prestavam assistência à Jó acusavam-no de infiel a Deus, não medindo a dureza das suas palavras a fim de levarem Jó ao “arrependimento” (Jó 4.7; 8.4-6; 11.6).
O fato é que mesmo a compaixão manifestada insipientemente pelos amigos de Jó não é percebida com muita freqüência nos dias de hoje. Que se dirá do amor pelos que nos ofendem seja no trabalho, em casa, na rua ou até mesmo na igreja?
A época em que Jó viveu é freqüentemente mencionada como a era patriarcal. Donald Stamps, editor da Bíblia de Estudo Pentecostal, alista uma série de fatos, dentre eles a ausência de qualquer menção à lei mosaica, que “indicam que Jó viveu por volta dos tempos de Abraão (2000 a.C) ou até antes”.[3] Era, sobretudo, uma época em que a família patriarcal era a unidade social básica, na qual o pai era também o sacerdote responsável pelas atividades religiosas na sua família.[4] Conquanto não haja menção de leis locais que regulassem a vida da região, as atitudes de Jó para com os seus semelhantes demonstram uma séria representação de um perfeito sistema legal constituído. E não se tratava de um sistema legal humano, mas a própria lei de Deus escrita no coração do seu servo; aquela que existe perpetuamente, independentemente de sua representação escrita na posterior legislação mosaica. Nada mais coerente do que compreender, à maneira de Jó, que ser sábio é temer a Deus (Jó 28.28). Ao temer a Deus, o patriarca de Uz compreendia a vontade do Senhor, embora não houvesse nenhum sistema legal escrito pelo qual Jó viesse a se pautar, sobretudo em relação ao próximo. Jó, sem o auxílio de lei escrita, amava a Deus de todo o coração e ao próximo como a si mesmo.
O tratamento de Jó para com os seus semelhantes, sobretudo aqueles em condições desfavoráveis, pode ser observado no capítulo 29, nos versículos 12-17, onde está escrito:
“Porque eu livrava o miserável, que clamava, como também o órfão que não tinha quem o socorresse. A bênção do que ia perecendo vinha sobre mim, e eu fazia que rejubilasse o coração da viúva. Cobria-me de justiça, e ela me servia de veste; como manto e diadema era o meu juízo. Eu era os olhos do cego e os pés do coxo; dos necessitados era pai e as causas de que não tinha conhecimento inquiria com diligência; e quebrava os queixais do perverso e dos seus dentes tirava a presa.”
Esta atitude de Jó para com o seu próximo pode ser classificada em duas espécies de justiça: uma que pode ser considerada mais direta e pessoal, no sentido de que conta apenas com a vontade daquele que pratica a justiça, sem que se defronte com obstáculos externos, e uma outra, que para ser exercida precisa que haja um certo confrontamento com pessoas ou circunstâncias que impedem o exercício da justiça para com o que se encontra em situação desfavorável. Analisemos estas duas espécies de justiça.
A primeira espécie está identificada nas atitudes de, pessoal e diretamente, livrar o miserável, socorrer o órfão e a viúva, servir de guia ao cego e locomover os coxos em suas necessidades, e manter cuidado paternal pelos necessitados. São atitudes que não envolvem agentes externos na condição de terceiros, mas apenas aquele que precisa do auxílio e o que o pode prestar. Muitas vezes a necessidade de auxílio se evidencia pelo clamor feito pelo necessitado, conforme Jó 29.12. No caso do miserável, clamor por pão, abrigo ou auxílio nas enfermidades; a esses cuidados, nos casos do órfão e da viúva, soma-se uma ajuda direcionada a suprir a falta da família; no caso do cego e do coxo, soma-se ainda a ajuda na locomoção e auxílio para atividades que não podem exercer sozinhos; os demais necessitados podem clamar por uma infinidade de benefícios ausentes em sua vida.[5]
A outra espécie de justiça está identificada nas atitudes de Jó de, diante de terceiros, inquirir com diligência sobre as causas de determinadas pessoas, das quais o próprio Jó não tinha conhecimento e arrebatar a presa das garras do perverso.
Em relação a este ponto em particular é necessário que se compreenda que Jó mantinha o entendimento de que o ser humano é portador de vários direitos naturais, embora nenhum demagogo liberal os houvesse ainda apresentado. Jó fala de direitos dos servos (Jó 31.13) e acima de tudo reconhecia a igualdade entre todos os seres humanos, algo que posteriormente os liberais chamariam de isonomia, isto é, o princípio que considera todos iguais perante a lei. Era certamente em relação a esses direitos que Jó empreendia investigações, verificando o seu cumprimento na vida do seu próximo. No caso de opressões verificadas, Jó empreendia o livramento do oprimido. Não devemos entender aqui atitudes exercidas pelo uso de armas ou violência, mas simples exercício da justiça social ao alcance do servo de Deus. Para Jó isto não significava mera satisfação a um suposto ego seu humanista. Era acima de tudo uma compreensão de que agir de modo diferente seria pecado e Jó temia o castigo de Deus (Jó 31.23).
Essas verdades acerca do caráter do patriarca Jó contrastam com aquilo que tem sido a essência do modo de viver contemporâneo, pautado em ideais de consumo e isolamento, vale dizer, valores individualistas. E é claramente perceptível que a igreja do Senhor não está imune a tais valores, motivo pelo qual as atitudes de Jó contrastam tanto com a nossa vivência de cristãos hoje.
Cabe ainda observar que esta descrição de Jó de sua integridade num momento de questionamento interior sobre quais seriam as suas falhas não são meras alegações de sua condição espiritual diante de Deus. Ao fim do grande sofrimento de Jó, Deus dirá que, diferentemente dos seus amigos, o patriarca de Uz foi o único que falou o que era reto a respeito de Deus (Jó 42.8), sendo que aqueles, por terem se equivocado em suas palavras, cometeram loucura que careceu de expiação através de holocaustos (v.42). Sempre cometemos loucura quando prescindimos da Palavra de Deus em qualquer aspecto de nossa vida diária. Lembremo-nos disso.


[1] Este texto faz parte de uma coletânea que discute, desde as situações práticas vivenciadas por Jó até a atualidade, as discrepâncias existentes entre uma prática do altruísmo genuinamente bíblica, como é o caso dos exemplos vivenciados por Jó, e um atual modelo cristão de altruísmo permeado pelos pensamentos e práticas da pós-modernidade. O próximo texto a ser postado neste blog dará continuidade ao estudo do altruísmo bíblico a partir de uma análise feita sobre o assunto na Lei do Antigo Testamento.
[2] Dennis MCNUTT, em Política para Cristãos (e outros pecadores), in: Michael PALMER. (Ed.) Panorama do Pensamento Cristão. 1ª Ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2001, p. 430 e 431, afirma que os cristãos agem em relação aos dois grandes mandamentos baseados no fato de serem ou teologicamente conservadores ou liberais. Segundo o autor “os conservadores teológicos – evangélicos fundamentalistas, pentecostais e carismáticos – parecem levar o primeiro mandamento mais a sério do que o segundo”, enquanto “os teológicos liberais são inclinados a ouvir a chamada da Bíblia para a justiça social, mas não tendem a preocupar-se demais com a devoção pessoal.” Para McNutt “Uma vida cristã plena tem de reconhecer que tanto nosso relacionamento com Deus quanto nosso relacionamento com os outros, pessoal e politicamente, são partes essenciais da vida cristã” (p. 431).
[3] Bíblia de Estudo Pentecostal. Rio de Janeiro: CPAD, 1995, pág. 767.
[4] Idem, ibidem, p.767.
[5] É evidente que em todos estes casos o ajudador também precisa prestar um auxílio espiritual ao seu próximo, sobretudo pelo fato de que muitas vezes a deficiência de algum bem chega a ocasionar fraqueza espiritual, isto é, desânimo, incredulidade e desespero, decorrentes de uma fé que foi abalada pelo sofrimento experimentado. No caso de infiéis, deve-se pregar a Cristo, o qual consolará o sofredor.

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