terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

MUNDANISMO NA IGREJA

O discípulo amado, em sua primeira epístola, fez-nos admoestações importantes concernentes a não amarmos o mundo, pois há incompatibilidade, segundo ele, entre amarmos o mundo e sermos amados pelo Pai (1 Jo 2.15). O apóstolo ainda dirá, mais tarde, que o mundo jaz no maligno, mas que podemos vencê-lo pela fé (5.4, 19). Quando olhamos o texto da tentação de Jesus vemos que Satanás ofereceu coisas consideradas importantes e gloriosas do mundo para Jesus (Mt 4.8). Tiago, o irmão do Senhor, deixou bem claro para os irmãos da sua época e para toda a posteridade que a verdadeira religião consiste, dentre outras coisas, em guardarmo-nos isentos da corrupção do mundo (Tg 1.27). O Mestre, por sua vez, falou-nos que nada aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua vida. Mesmo assim, Jesus, o filho único de Deus, foi enviado para morrer pelo mundo (Jo 3. 16).

Pelo que podemos compreender dos textos acima, percebemos que a palavra “mundo” apresenta uma certa polissemia ao ser empregada na Escritura. O significado do termo é tão rico quanto o é a variedade de incoerências que percebemos no mesmo emprego da palavra atualmente no meio cristão.

Desde nossa infância na igreja percebemos nos sermões pastorais as admoestações relativas aos perigos que o mundo representa para a igreja e os exemplos mais comuns que nos são dados dizem respeito às vestimentas, cabelo, namoros, uso de aparelhos eletroeletrônicos, contato com descrentes, dentre outros. Quando encontramos no nosso meio cristãos que fogem aos padrões nesses aspectos relacionados nós os consideramos mundanizados e à medida que os anos se passam vemos a igreja mais mundanizada, considerada a mundanização nos aspectos em que apresentamos aqui. Neste contexto, vemos as igrejas num dilema: aceitar alguns aspectos da mundanização, considerados muitas vezes irrelevantes diante do corpo doutrinário central da Escritura ou manter a postura rígida contra o mundanismo na igreja – a primeira atitude poderá arrebanhar mais fiéis, inclusive aqueles que consideram o viver cristão por demais austero, e a segunda, por sua vez, apresenta o risco aparente de continuar estagnada no que diz respeito ao aumento do número de membros. Fica fácil saber qual é a posição que as igrejas assumem no seu dia-a-dia.

Cumpre-nos, entretanto, rever aquilo que compreendemos atualmente como mundanismo atentando mais acuradamente para o que a bíblia parece querer expressar quando utiliza o termo mundo. Não queremos aqui dizer que a Escritura não mantenha uma postura consolidada com respeito ao modo como os cristãos devem trajar-se ou usufruir dos avanços tecnológicos, mas o que parece ficar evidente para nós é que os textos bíblicos pretendem conduzir-nos não apenas àquilo que na verdade seria apenas conseqüência do mundanismo – o modo de vestir-se, por exemplo – , mas ao que realmente fundamenta o mundanismo. Donald Stamps diz-nos que a palavra “mundo”, do grego kosmos, refere-se na verdade ao

“vasto sistema de vida desta era, fomentado por Satanás”, o qual “emprega as idéias mundanas de moralidade, das filosofias, psicologia, desejos, governos, cultura, educação, ciência, arte, medicina, música, sistemas econômicos, diversões, comunicação de massa, esporte, agricultura, etc, para opor-se a Deus, ao seu povo, à sua Palavra e aos seus padrões de retidão”.[i]

Considerando o termo mundo desta forma, percebemos que nos encontramos muitas vezes combatendo mais as características visíveis, palpáveis ou secundárias do fenômeno mundanismo – como é o caso do vestir-se, da postura sexual, do cuidado com as tecnologias, etc – do que com os fundamentos do que realmente ameaça a Igreja em todos os tempos. Quando agimos assim simplesmente podamos uma árvore que continuará a brotar no seio da igreja, pois estamos atacando apenas as suas folhas ou galhos enquanto as suas raízes poderão estar fincadas continuamente no meio da igreja. Ademais, quando resolvermos atacar as raízes mesmas do mundanismo perceberemos que as suas conseqüências atuais para a igreja vão para muito além dos aspectos relativos à indumentária, uso de tecnologias ou comportamento sexual e veremos que nosso comportamento cristão em geral, o que inclui o aspecto ético-moral, político e social encontra-se profundamente comprometido. Se as coisas realmente são assim, então estamos todos mundanizados, com nossas luzes embaixo do alqueire e na condição de sal sem sabor ou sem poder de preservação (Mt 5. 13-15).

É importante ainda, no intuito de reforçarmos o que temos dito até aqui, e aprofundando ainda mais esta concepção de mundanismo, mencionarmos a compreensão de John Stott em relação ao que significa mundanismo a partir da oposição constatada por ele entre intelecto e emoção, verificada efetivamente entre os crentes. Aos que negam qualquer possibilidade de se permitir a ingerência do intelecto nas coisas espirituais, pautando-se apenas por suas experiências espirituais elevadas sempre ao status de verdade última, inclusive a expensas da análise bíblica, Stott admoesta:

“Sinto muito ter de dizer que eles estão se auto-proclamando intensamente, como sendo crentes mundanos. Pois ‘mundanismo’ não é apenas uma questão (como fui ensinado a acreditar) de fumar, beber e dançar, nem tampouco aquela velha questão sobre embelezar-se, ir a cinemas, usar minissaias, mas o espírito do século. Se absorvermos sem qualquer exame os caprichos do mundo (neste caso, o existencialismo), sem que primeiro sujeitemos isto a uma rigorosa avaliação bíblica, já nos tornamos crentes mundanos.”[ii]

A análise do autor e sua definição de mundanismo, a partir de um exemplo prático, vêm fazer coro com o que apresentamos mais acima como sendo de suma importância para a igreja dos últimos dias – atacar o mundanismo em suas raízes para reduzir os seus efeitos no seio da igreja.

O exemplo analisado por Stott citado aqui envolve a polarização entre intelecto e emoção na vida de fé, mas o autor tratou de mais polarizações nesta sua obra, enfatizando sempre o modo como muitas vezes sacrificamos até mesmo a verdade bíblica em favor de uma noção culturalmente instituída – isto é, priorizamos muitas vezes aquilo que é do mundo em prejuízo daquilo que está claro na Escritura. É o caso, por exemplo, da polarização entre Evangelismo e Ação Social. Muitos cristãos consideram que não é também função da igreja melhorar a sociedade através de ações concretas, pois isso seria mundanismo. Stott, entretanto, cita Sir Frederick Catherwood, que assevera: “Procurar melhorar a sociedade não é mundanismo, mas amor. Lavar aos mãos da sociedade não é amor, mas mundanismo.”[iii]

Isso necessariamente deverá conduzir-nos a uma análise de todos os aspectos da vida dos cristãos da atualidade, pois através dela perceberemos em que faceta da nossa vida estamos sendo mundanos e em qual não estamos sendo. Para começar perguntemo-nos: Como temos agido no diz respeito às nossas responsabilidades sociais? Temos amado o nosso próximo e procurado ativamente o seu bem ou consideramos que isso é humanismo próprio de idealistas da sociedade? Sobre este ponto Stott diz-nos que

“um cristianismo que usaria a preocupação vertical [o ato da salvação de Deus na vida dos indivíduos] como um meio para escapar de sua responsabilidade pela vida comum do homem é uma negação do amor de Deus pelo mundo, manifestado em Cristo.”

Diz-nos ainda que “deve tornar-se claro que membros de igreja que de fato negam suas responsabilidades com o necessitado em qualquer parte do mundo são tão culpados de heresia quanto todos os que negam este ou aquele artigo de Fé”.[iv]

Se quisermos, portanto, não sermos mundanos neste aspecto de nossa vida de fé precisamos assumir nossas responsabilidades sociais, reconhecendo que “o problema jaz em encontrar o equilíbrio entre ‘proteger nossos próprios interesses’ e ter preocupação adequada pelo próximo, onde quer que ele esteja.”[v]

Perguntemos, em seguida: Como temos agido enquanto agentes políticos? Temos levado em conta a Escritura, através da qual Deus estabelece como fim dos governos o bem da sociedade (Rm 13.4a), ou temos acatado as práticas mundanas de enriquecimento próprio e favorecimento de grupos em prejuízo dos que mais precisam das ações do governo?

Também neste aspecto, se não quisermos, na condição de agentes políticos, andar conforme o mundo, precisamos olhar para a Escritura e não para o que o mundo ensina. Um exemplo clássico de mundanismo na política foi o pragmatismo de Jeroboão I. Mesmo tendo a promessa de Deus de que governaria sobre dez tribos, este rei receou no seu coração e, tomando conselho (fora da Escritura) fez dois bezerros de ouro para que Israel os adorasse nos dois extremos do reino (Dã e Berseba), sem que precisassem ir a Jerusalém adorar o Deus Verdadeiro (1 Rs 11.31;12.26-33). E para os que consideram que as ações políticas estão fora da esfera da religião e da verdade e, portanto, do pecado, foi registrado na Escritura que “este feito se tornou em pecado” (v. 30).

E na área moral, será que andamos conforme a ortodoxia bíblica ou também estamos sendo mundanos? Será que ainda sabemos a diferença entre o bem e o mal, o falso e o verdadeiro, ou estamos considerando que a verdade é relativa, à maneira dos relativistas? Estamos regulando nossos comportamentos sexuais pautados na Escritura ou na moral mundana? Será que o nosso modo de vestir-se espelha a visão bíblica de sexualidade ou a visão mundana? E sobre o casamento? E nossas noções de justiça, sinceridade, honestidade, retidão e pureza? Ainda as consideramos à luz dos textos bíblicos ou já foram substituídas pelas noções relativistas?

Esta pergunta nos suscita uma seguinte, no campo epistemológico: ainda cremos numa Verdade Absoluta acessível pela revelação de Deus? Ou será que, bem no fundo de nosso ser, achamos que o cristianismo é uma mera manifestação cultural de um grupo milenar?

A título de conclusão, podemos dizer que estas questões, evidentemente, podem ser aplicadas a muitas outras situações de nossa vida, aqui não mencionadas, mas fica o convite para as indagações à luz da verdade bíblica: Em que aspecto de minha vida estou vivendo ou agindo conforme o mundo e não segundo Cristo? Tais indagações certamente nos ajudarão a compreender admoestações bíblicas como as de João, de que não devemos amar o mundo, e expressões do tipo “o mundo jaz no maligno”, pois o príncipe deste século é o diabo, o pai da mentira (Jo 8.44). Sob sua influência é que foram e são elaboradas as filosofias e pensamentos que em geral fundamentam a base da existência humana em todos os aspectos de suas vidas. Para o cristão é imperativo destruir essas fortalezas através do resgate do modo de viver humano em geral, submetendo-o aos modelos bíblicos. Nossa estratégia não deve ser apenas defendermo-nos, mas atacarmos. Não com armas materiais, mas com as armas espirituais, tendo o cuidado de levarmos cativo todo entendimento a Cristo (2 Co 10.5) e não nos deixando sermos seduzidos pelo mundo.

Francisco Sulo

Esperantina, 15 de fevereiro de 2010.




[i] Donald STAMPS. Bíblia de Estudo Pentecostal, Rio de Janeiro: CPAD, 1995, p. 1957.

[ii] John R. W. STOTT. Cristianismo Equilibrado. 3ª ed. Rio de Janeiro: CPAD, 1995, p. 23 (grifos nossos).

[iii] Idem, Ibidem, p. 57.

[iv] Ibidem, p. 63, 64.

[v] Dennis MCNUTT. Política para Cristãos (e outros pecadores). In: Panorama do Pensamento Cristão. Rio de Janeiro: CPAD, p. 438.

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