quinta-feira, 7 de julho de 2011

A irracionalidade se aplica à Deus e a Sua Criação?


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Na última postagem discorri sobre um tema que foi suscitado a partir de uma tentativa de debate entre mim e um interlocutor, o qual dava mostras de ceticismo ante a possibilidade de todos os cristãos – e mesmo os ímpios, de alguma forma – terem conhecimento de Deus e de sua vontade.

Um outro ponto também apresentado por meu interlocutor no debate foi a ideia de que razão e fé são totalmente incompatíveis; noutras palavras, que as coisas de Deus – e o próprio Criador – seriam caracterizadas pelos aspectos da fé, enquanto crença cega em algo, enquanto as coisas humanas caracterizar-se-iam pelo aspecto racional, de maneira que teríamos um mundo onde haveria alegações de racionalidade – o humano – e um mundo ao qual a racionalidade não se aplicaria ou que seria até mesmo antagônico à razão.

Mas seriam razão e fé totalmente incompatíveis? Será Deus um Ser irracional? Afirmei ao meu interlocutor que não, ainda que na contramão do que disse um dos mais influentes pais da Igreja Cristã, Tertuliano, a quem se atribui o seguinte: “Creio porque absurdo.”[1]

Temos de convir, entretanto, que no imaginário cristão popular e até mesmo em setores mais elevados da hierarquia eclesiástica predomina uma certa postura que opõe fé e razão, o que de alguma maneira tem contribuído para relegar a fé ao campo do absurdo, da mera crença irracional em verdades metafísicas, ao mesmo tempo em que atribui, embora não intencionalmente, ao conhecimento científico o status de verdadeiro, porque racional ou empírico. Mas seriam as coisas realmente assim?

R. C. Sproul considera que um dos aspectos negativos do trabalho da apologética hoje estaria relacionado ao abandono de determinados princípios do entendimento que são prescindidos não apenas pelo ateísmo, mas até mesmo por setores internos à igreja. O abandono desses princípios seria algo totalmente nocivo à igreja, pois terminaria por fazer coro à acusação ateísta de que o Evangelho é algo irracional e que precisa, portanto, estar restrito ao campo da crença, dos valores, não participando daquilo que é racional.

Na contramão disso, Sproul afirma que o cristianismo é racional em sua essência e que “seguir o absurdo é envolver-se não com a fé, mas com a credulidade”.[2] O autor, depois de condenar o racionalismo, mas não a racionalidade, ainda diz que “apesar da divina revelação nos levar além dos limites da especulação racional ela não fica abaixo da inteligibilidade racional”.[3]

Norman Geisler, importante apologista contemporâneo, também é enfático ao afirmar que o absurdo não é uma marca distintiva do cristianismo. Segundo Geisler, “a Bíblia usa o termo ‘mistério’ para coisas que estão além da nossa razão, mas não contra ela”,[4] e que a única vez em que o termo antítese é mencionado pela Escritura é exatamente no sentido de que o evitemos (1 Tm 6.20).[5] O autor ainda nos sugere que termos que se relacionem com contradições lógicas, como paradoxo, antinomias ou antíteses, “deveriam ser evitados pelos cristãos quando falassem dos mistérios da fé como a Trindade, a encarnação e a relação entre a soberania e o livre-arbítrio.”[6]

A opinião dessas autoridades em estudos bíblicos parece sugerir-nos que não seria sábia uma atitude de aversão à racionalidade, como se essa esta fosse nociva à defesa da fé.

Ao meu interlocutor eu disse que não conseguia aceitar a ideia de um Deus irracional ou alheio à irracionalidade. Disse-lhe que não podia aceitar ao mesmo tempo em que Deus é e não é, o que seria uma violação ao princípio da não-contradição. E é exatamente o que ocorre quando louvamos o suposto caráter irracional da fé ou da existência de Deus, isto é, ao preterir a racionalidade em favor da irracionalidade estabelecemos absurdos do tipo: “Deus é e não é ao mesmo tempo” ou “Vamos ao céu e ao inferno ao mesmo tempo.”

Para Sproul é essencial que não negociemos a perda de determinados princípios do entendimento na nossa discussão sobre a fé cristã, pois asseguram um conhecimento de Deus e de sua vontade em razão exatamente do caráter racional existente em Deus e na sua criação. Esses princípios seriam: (1) a lei da não-contradição, (2) o princípio da causalidade, (3) a básica (embora não perfeita) confiabilidade da percepção dos sentidos e (4) o uso analógico da linguagem.[7] Para o autor, “rejeitar qualquer um desses princípios pode ser fatal para a argumentação do crente.”[8]

Não parece sábio, pois, prescindir do caráter racional da fé e das coisas relacionadas a Deus e ao cosmos em geral, na medida em que essa mesma racionalidade revela nuances da verdade de Deus aos homens sem a possibilidade de confusão absoluta. Deus não é Deus de confusão (1 Co 14.33). Logo, o absurdo não seria uma de suas características.

Obviamente que o fato de a racionalidade ser aplicada a Deus e a sua criação não significa que O possamos compreender perfeitamente, dada as consequências da queda para o entendimento humano, as limitações estabelecidas pelo próprio Deus sobre o que podemos conhecer (Dt 29.29) e o fato de que muitos dos Seus mistérios estão além da nossa compreensão, o que não os torna por isso mesmo irracionais.

Mas isso é matéria para discussões posteriores.


[1] Philotheus BOEHNER e Etienn GILSON acreditam, entretanto, que a atribuição dessa máxima a Tertuliano não passa de interpretações equivocadas sobre o autor da Igreja Latina, e que “não se pode afirmar... que admita [Tertuliano] uma contradição entre a fé e a razão, se bem que as suas expressões pareçam insinuá-la” (História da Filosofia Cristã. 12ª ed. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 133).
[2] R. C. SPROUL. Defendendo sua Fé – uma introdução à apologética. 1ª ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2007, p. 7 e 8.
[3] SPROUL, idem, ibidem.
[4] Norman GEISLER. Eleitos, mas Livres – uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre arbítrio. São Paulo: Vida, 2001, p. 50.
[5] GEISLER, idem, ibidem.
[6] Idem, ibidem.
[7] Consultar a obra de Sproul já citada neste texto.
[8] SPROUL, idem, ibidem, p. 26.

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