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Certa feita fui surpreendido no início de um debate com outro cristão quando este afirmava que Deus seria algo totalmente incognoscível, assim como a sua palavra escrita, a Bíblia, exceto para alguns poucos iluminados, que teriam dividido a existência na Terra na condição de porta-vozes da verdade divina. Na verdade seu argumento parecia fazer parte de uma empreitada com o sentido de emudecer qualquer argumento meu oriundo de minha experiência cristã ou do conhecimento bíblico adquirido a partir das preleções na Igreja e das leituras particulares; sou tentado, entretanto, a reconhecer que realmente meu interlocutor partilhava da ideia de que os cristãos comuns são incapazes de saberem algo sobre Deus e o seu propósito para o ser humano e o cosmos em geral.
Até que ponto, entretanto, essa não seria uma ideia presente na mentalidade de muitos cristãos? Ou, seria Deus e a Sua palavra realmente incompreensíveis?
Essa ideia não faria parte apenas do ideário de muitos cristãos, na medida em que podemos presenciar vários de casos de descrentes que também apresentam certo ceticismo no que diz respeito à Deus e a Sua palavra. Alguns dizem que Deus é muito complexo e que a Bíblia, caso fosse realmente a palavra de Deus, não seria compreendida por nós, pessoas comuns, a despeito de nossa fé nEle.
Mas o que a Bíblia tem a nos dizer sobre essa problemática? Teríamos, partir da Escritura, argumentos que justificassem a verdade daquilo que compreendemos sobre Deus? Vejamos.
Argumento em favor da incognoscibilidade de Deus
Um dos argumentos utilizados pelo meu interlocutor, por ocasião do frustrado debate, para justificar que só alguns iluminados poderiam conhecer algo sobre Deus e o seu propósito é o seguinte: “Certamente o Senhor JEOVÁ não fará coisa alguma, sem ter revelado o seu segredo aos seus servos, os profetas” (Am 3.7).
Há algo sobre este texto que precisa ser melhor explicitado, pois ele não justifica que Deus e o seu propósito só sejam compreendidos pelos seletos iluminados, mas, por outro lado, que Deus não faz nada que não seja anunciado primeiramente. Noutras palavras, qualquer evento realizado por Deus teria um anúncio prévio, como foi o caso do dilúvio, do cativeiro babilônico e mesmo da vinda do Messias.
Obviamente que o Senhor fará conhecida a sua vontade primeiramente diante dos profetas, como ocorria no AT, ou do anjo da igreja, no NT. Mas não é disso que trata este texto. O objetivo aqui é discorrer não sobre quem está na condição de primeiro receber a revelação do conhecimento de Deus e de sua vontade, mas da abrangência da revelação de Deus aos homens, isto é, se todos seríamos ou não conhecedores potenciais da vontade do Senhor.
Argumentos em favor da cognoscibilidade de Deus
O salmista Davi expressa nos seus salmos uma das mais maravilhosas evidências de que Deus é um Ser que se revela através da criação do universo mesmo. Diz o salmista: “Os céus manifestam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos” (Sl 19.1).
O apóstolo Paulo é do mesmo parecer a ponto de até afirmar que o conhecimento de Deus visível na criação é razão suficiente para que ninguém seja tomado por inocente por ocasião do juízo. Diz o apóstolo:
“porquanto o que de Deus se pode conhecer neles [nos homens injustos] se manifesta, porque Deus lho manifestou. Porque as suas coisas invisíveis, desde a criação do mundo, tanto o seu eterno poder como a sua divindade, se entendem e claramente se veem pelas coisas que estão criadas, para que eles fiquem inescusáveis” (Rm 1.19 e 20).
Até mesmo noções morais básicas presentes em todos os homens denunciariam o conhecimento de Deus e sua vontade manifestada a todos:
“Porque, quando os gentios, que não têm lei, fazem naturalmente as coisas que são da lei, não tendo eles lei, para si mesmo são lei, os quais mostram a obra da lei escrita no seu coração, testificando juntamente a sua consciência e os seus pensamentos, quer acusando-os, quer defendendo-os” (2.14 e 15).
Paulo ainda dirá no Areópago, na presença de filósofos epicureus e estóicos, e antes de lhes anunciar a palavra do juízo vindouro de Deus, que o Senhor “não está longe de cada um de nós” (At 17.27).
Obviamente que esses textos não trazem uma definição explícita do que seria a revelação de Deus, na medida em que ela ocorre de maneiras variadas, conforme o propósito mesmo da vontade de Deus. Daí que os teólogos tenham dividido a revelação de Deus em geral e especial. Os exemplos acima fariam parte, então, daquilo que se pode chamar de revelação geral de Deus, pois ocorrem de forma natural, o que não invalida sua eficiência e poder de acusação por ocasião do Dia do Juízo (Rm 2.16).
A revelação especial consistiria na manifestação de Deus e de sua vontade através da aparição aos profetas, da inspiração dos escritores sagrados e do testemunho individual na vida de cada crente que mantém uma vida de comunhão com o Senhor.
Independentemente do fato de a revelação de Deus dar-se de forma natural ou especial, a verdade é que o crente em Cristo não estaria impedido de gozar da felicidade deste conhecimento.
Neste sentido, o cristão não seria uma espécie de fiel que esperaria profetas extraordinários aparecerem esporadicamente na história da Igreja expressando a revelação de Deus, recebida de forma especial e restrita. Por outro lado, a Escritura nos convence da necessidade de conhecermos a Deus e prosseguirmos nessa empreitada (Os 6.3).
Ademais, aos crentes verdadeiramente espirituais é dada “a mente de Cristo” (1 Co 2.16); esse mesmo crente é capaz de compreender as coisas do Espírito de Deus, que se discernem espiritualmente, pois “o que é espiritual discerne bem tudo, e ele de ninguém é discernido” (v. 15).
Conclusão
Deus, portanto, e a título de encerramento, é um Ser de revelação. De nada adiantaria a existência da Escritura se não pudesse ser compreendida, embora essa compreensão esteja sujeita a uma espiritualidade sadia diante de Deus.
De qualquer modo há conhecimento de Deus visível a todos de modo natural, ainda que limitado, e conhecimento mais profundo e espiritual disponível a partir de uma vida dedicada a Cristo, “em quem estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência” (Cl 2.3).
Nem tudo, entretanto, será conhecido por nós (Dt 29.29), nem toda experiência espiritual é uma experiência de compreensão da verdade de Deus e alguns terão maior parcela desse conhecimento verdadeiro, dada a sua posição e responsabilidade no Reino de Deus. Mas em nenhum momento aceitemos a ideia que Deus ou a sua vontade não podem ser conhecidos.